PAPAI, VOCÊ JÁ MENTIU?

 


Crianças surpreendem os adultos com perguntas inusitadas. Mas não somente, algumas das perguntas são bem difíceis de responder.

São difíceis porque se abrem para mais de uma resposta e, não raro, bem distintas quanto ao efeito de criação de imagens ou sentimentos que podem ser suscitados na criança e, consequentemente, na criação ou reforço de certos valores ou comportamentos.

Ao responder perguntas difíceis, algumas famílias contam “mentirinhas” com a justificativa de melhor educar os filhos. Outras preferem a verdade sempre, ainda que assumindo o risco de que a verdade gere um efeito de reforço ou construção de valor não desejado pela família, o que demandará um trabalho a ser feito posteriormente para desconstruí-lo, caso isto ocorra.

É possível conciliar respostas verdadeiras e educativas às perguntas surpreendentes feitas pelas crianças mas, no dia a dia, nem sempre as famílias conseguem formular respostas que atendam a estes dois propósitos. A falta de tempo, o excesso de preocupação, ou a reprodução de hábitos culturais podem ser motivos da dificuldade de formular estas respostas em que verdade e educação coexistam.

Nem sempre parece haver um casamento perfeito entre os dois atos, portanto. Vamos pensar um exemplo, extraído de fato, porém adaptando o caso, substituindo os nomes reais por nomes ficcionais.

Cássio é pai de Joana, de 7 anos. Joana, que em seu primeiro setênio, conheceu o mundo bom, agora está no início do segundo setênio da vida, período da troca dos dentes, momento em que é apresentada a perspectiva de que o mundo é belo. Quando Joana chegar aos 14 anos estará em outra fase de desenvolvimento, que corresponde à maturação sexual. Será o momento em que perceberá o mundo como verdadeiro. Perceber o mundo bom, o mundo belo e o mundo verdadeiro, correspondem à divisão das fases de desenvolvimento em setênios. Esta é uma referência da Antroposofia, adotada em escolas de Pedagogia Waldorf. Joana, aos 7 anos, está atenta à autoridade do pai e da mãe e aos valores que lhes são transmitidos.

Um dia Joana conta à Cássio que um colega da escola mentiu, acusando outro aluno de ter feito algo que não era permitido pela professora.

Depois de ouvir todos os detalhes do caso e, antes mesmo que Cássio comentasse algo sobre o que a filha havia contato, ela pergunta a ele, olhando fixamente nos olhos: “Papai, você já mentiu?”

O pai se assusta com a pergunta. A sensação que sente é de desconforto e não sabe como reagir por alguns instantes. Fica em silêncio, enquanto pensa: se digo que já menti, posso acabar incentivando-a a mentir também, mas se digo que nunca menti, estarei mentindo para a minha filha. A pergunta que Cássio formula internamente, em pensamentos é: o que devo fazer?

Esta é uma pergunta que está relacionada à aplicação de regras de convívio social que estão introjetadas na cultura e valores de Cássio e que acabam sendo compartilhadas com a filha, neste processo de socialização das crianças com a família.

Cássio está livre para decidir se irá responder a filha, falando a verdade ou mentindo. Esta liberdade de ação é um pressuposto da “Ética”, que, de maneira simples, podemos definir como princípios e valores que regem a sociedade. A Ética, segundo CARDOSO (2010, p.2):


(…) remete às ações livres e responsáveis de um agente humano, um sujeito moral, autônomo, que orienta seus atos por valores, hoje, ao usarmos o vocábulo, tendemos prontamente a associar tal gênero de ações a uma vontade racional determinada por leis ou princípios normativos (universais ou gravado em práticas sócias de caráter histórico. (CARDOSO, 2010, p.2)


Cássio, então, decide dizer à filha que sim, já havia mentido.

A filha se espanta, afinal, ela já havia assimilado, antes mesmo do episódio que aconteceu na escola, que não era certo mentir. Como poderia, então, o próprio pai ter mentido alguma vez? Ela olha para Cássio sem compreender a “verdade” que o pai lhe apresenta (e que representa um valor contrário ao que havia assimilado). Ambos ficam em silêncio e o momento é de tensão.

Cássio rompe o silêncio, contando para a filha que, quando mentiu se arrependeu. Cássio diz à Joana que, quando mentiu, é porque havia feito algo que magoaria uma pessoa e preferiu não contar, por vergonha. Mas que depois acabou contanto a verdade para a pessoa e pediu desculpas. Joana escuta atentamente e formula um comentário, a partir de outro valor que também já possui em seu repertório. Com empatia, diz: “Todo mundo erra alguma vez, papai”.

Não há como subestimar o poder da assimilação de valores pelas crianças no processo de socialização com a família, desde o primeiro setênio. Refletir sobre os atos praticados na educação de uma criança são extremamente importantes, tangenciam não apenas a formação moral, mas também o fortalecimento ou não de valores éticos em sociedade.3927074


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Paloma Goulart

Escritora – Professora - Advogada

Doutora e Mestre em Sociologia / Especialista e Bacharela em Direito



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Referências:


CARDOSO, S. Montaigne: uma ética para além do humanismo. O que nos faz pensar. v.19, n.27, p.

 257-278, maio 2010. Disponível em: http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-

rio.br/index.php/oqnfp/article/view/308


STEINER, Rudolf. A Prática Pedagógica: segundo o conhecimento científico-espiritual do homem.

 Tradução Christa Glass. Editora Antroposófica; FEWB, 2000.


Imagens:


Imagem de fonte livre de Olya Adamovich por Pixabay. Acesso em 27.07.2022


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