O QUE É ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA?

 


Projetos importantes de popularização do Direito, inclusive em escolas¹, têm surgido e, sob esta inspiração, este artigo visa contribuir para melhor compreensão de um tema de Direito pouco compreendido pelas pessoas em geral.

Vamos abordar um tipo de contrato muito recorrente nas compras de bens como veículos e imóveis, mas nem sempre bem compreendido: o contrato de alienação fiduciária.

Imaginemos que Cristiane deseja comprar um veículo. Cristine está trabalhando, há meios de comprovar que possui renda. Apesar disso, Cristiane não possui renda suficiente para comprar o carro à vista. Então, decide financiá-lo. Vai até a agência de venda de carros e o vendedor lhe propõe um contrato de compra e venda com alienação fiduciária.

Cristiane já ouviu a palavra “alienação” em outro contexto, na linguagem popular brasileira, cujo significado é “alheio”. Na forma corrente da língua, se usa dizer que uma pessoa é alienada, no sentido de alheio a certas realidades da vida.

Tímida, não pergunta o que é exatamente o contrato e se limita a indagar quais serão os valores das parcelas e quantas parcelas haverá para pagar. Após esclarecidas as dúvidas, assina o contrato.

Sai da agência com uma via do contrato de alienação fiduciária, feliz, com um carnê e um carro novo que julga já ser de sua propriedade. Caro leitor, será, realmente, que Cristiane é a proprietária?

Outro caso: Tales irá financiar um apartamento junto ao Sistema Habitacional de uma conhecida instituição bancária, a Caixa Econômica Federal.

Depois de conhecer vários imóveis, finalmente encontrou aquele que atende as suas necessidades. Pede ao corretor que providencie o contrato de compra e venda.

Tales envia todos os documentos necessários para o corretor que, por sua vez, possui parceria com uma agência que intermedia as contratações de compra e venda de imóveis junto à Caixa Econômica Federal. É uma agência credenciada pela Caixa Econômica para realizar este serviço administrativo e de análise de crédito.

A agência agenda a data para assinatura de contrato com Tales e ele comparece no dia marcado. Quando inicia a leitura do contrato, antes de assiná-lo, Tales se surpreende com o termo “alienação” no cabeçalho do contrato.

Como estudante de Sociologia se lembra de ter lido o termo “alienação”, em seus estudos em textos e livros clássicos da sociologia. Ele leu obras de Karl Marx e sabe que este termo aparece recorrentemente em vários dos textos que o autor produziu. Alienação, explicando de forma simplificada, aparece nos textos com o sentido de desassociarão do ser humano em relação ao que vive realmente. Seria como uma falta de lucidez sobre a sua própria história e também sobre os recursos e forma de sobrevivência ao qual está vinculado. Ao mundo do trabalho é possível perceber a aplicação do termo “alienação”, para Marx, quando se pensa no distanciamento que um trabalhador possui dos meios e processos de produção, bem como dos produtos resultantes desta produção:


Partiremos de um fato econômico contemporâneo. O trabalhador fica mais pobre à medida que produz mais riqueza e sua produção cresce em força e extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria ainda mais barata à medida que cria mais bens. A desvalorização do mundo humano aumenta na razão direta do aumento de valor do mundo dos objetos. O trabalho não cria apenas objetos; ele também se produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e, deveras, na mesma proporção em que produz bens.

Esse fato simplesmente subentende que o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, agora se lhe opõe como um ser estranho, como uma força independente do produtor. O produto do trabalho humano é trabalho incorporado em um objeto e convertido em coisa física; esse produto é uma objetificação do trabalho. A execução do trabalho é simultaneamente sua objetificação. A execução do trabalho aparece na esfera da Economia Política como uma perversão do trabalhador, a objetificação como uma perda e uma servidão ante o objeto, e a apropriação como alienação.(MARX, 2004, p. 79)


Tales lembra de tudo isso que leu. Olha para o funcionário que está lhe atendendo. Imagina que vários pedreiros que construíram o apartamento que ele está prestes a comprar provavelmente participaram de etapas específicas. Exemplo: o pedreiro que atuou na etapa de fundação, provavelmente não é o mesmo que atuou no acabamento e ele não é quem detém o terreno e materiais da obra, muito menos é quem vende a obra. Tales imagina, então, que pode ser uma possível aplicação do conceito de “alienação”, que está aprendendo em seus estudos de sociologia.

Estas ideias lhe passam pela cabeça até que a funcionária a agência credenciada da Caixa Econômica Federal pergunta: “o senhor possui alguma dúvida?”

Tales gostaria de perguntar à funcionária se a atuação dos pedreiros da obra poderiam ou não se encaixar no conceito de “alienação”, mas ele sabe que ela nada entenderia. Então pergunta apenas o que significa “alienação”, palavra que está gravada no cabeçalho do contrato.

A agente explica que no Direito alienação é a venda mas que, no caso do contrato de Tales, é uma alienação fiduciária porque a venda tem uma particularidade: de que o bem que está sendo adquirido é a garantia do empréstimo bancário (a fidúcia).

Naquele contrato, a Caixa Econômica Federal está emprestando o dinheiro a Tales, para que pague a empresa que vende o apartamento. Como garantia de que Tales irá pagar a Caixa Econômica Federal, esta passa a ter a propriedade resolúvel e a posse indireta do apartamento.

Por propriedade resolúvel leia-se: a dona (proprietária) do apartamento, na prática, é a Caixa Econômica Federal, enquanto Tales estiver pagando as prestações. Se ele deixar de pagar, ela poderá ajuizar uma ação para que Tales desocupe o apartamento e este possa ser vendido para outro interessado. Após terminar de pagar todas as prestações, Tales se torna proprietário do apartamento.

A posse indireta significa que, enquanto não findar o pagamento de todas as parcelas, Tales terá o consentimento da Caixa Econômica Federal para morar no apartamento, mesmo sendo ela a proprietária.

Tales assina o contrato e sai da agência com uma das vias, além chaves do apartamento. Diferentemente de Cristiane, Tales não sai “alienado” no sentido popular do termo, pois sabe que o imóvel vendido é uma “alienação fiduciária”, no sentido jurídico, e, por isso, ainda demorará algum tempo para que seja, de fato, proprietário do apartamento.


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Paloma Goulart

Escritora – Professora - Advogada

Doutora e Mestre em Sociologia / Especialista e Bacharela em Direito


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Notas

¹ No estado de Minas Gerais, recentemente, foi aprovada a Lei nº 24.213/2022,

 que determina a inclusão de conteúdos referentes à cidadania nos currículos das

 escolas de ensino fundamental e médio do estado, o programa estadual Direito

 na Escola.


Referências

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos.Primeiro manuscrito. 1edição.São

 Paulo.Boitempo Editorial,2004.Disponível em:<https://www.google.com/url?

sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=2ahUKEwikvsyEz6zgAhUELLkGH

d9WDYQFjAAegQIBhAC&url=https%3A%2F%2Fmarcosfabionuva.files.wordpress.c

om%2F2011%2F08%2Fmanuscritos-

econc3b4micofilosc3b3ficos.pdf&usg=AOvVaw1UbFr3xigz9qf41e1qFt34>. Acesso

 em 8 de fevereiro de 2019.


Imagens:


Imagem livre cedida de Jens P. Raak por Pixabay. Disponível em <https://pixabay.com/pt/photos/contrato-consulta-escrit%c3%b3rio-408216/>. Acesso em 10/08/2022.





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