FAMÍLIAS, EDUCAÇÃO E PERCURSOS INESPERADOS

 


Inaugura este texto o cartaz do filme "Mães Paralelas". Falaremos sobre ele neste texto dentro, para abordarmos o assunto: família.

O definição de “família” é grande. Há famílias monoparentais, famílias compostas por mulheres, por homens, um homem e criança(s), duas mulheres, avó e netos, enfim, uma infinidade de possibilidades.

Sempre foi assim na história da humanidade, mas, sem dúvidas, as reivindicações por respeito e direitos das pessoas LGBTQIA+ ressaltam essa multiplicidade, que não começou ontem. O reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos como família no plano social e com direitos equivalentes às uniões heteroafetivas na dimensão jurídica, mantém evidente a constatação da diversidade de arranjos interpessoais que podem ser nomeadas como família.

A Sociologia nos ensina que família é uma instituição social primária, ou seja, aquela ensina os primeiros valores e perspectivas acerca do mundo para as crianças. A família possui uma estrutura e exerce um papel elementar de educação. Educação aqui num sentido amplo: de apresentar e nos auxiliar na leitura do mundo, uma primeira “escola” de socialização:


[…] a família é como o espaço histórico e simbólico no qual e a partir do qual se desenvolve a divisão do trabalho, dos espaços, das competências, dos valores, dos destinos pessoais de homens e mulheres, ainda que isso assuma formas diversas nas sociedades. (SARACENO, 1997, p.14).


Além assumir formas plurimas, as famílias também possuem percursos de formativos que podem ser inesperados.

A morte de uma mãe, pode ocasionar um novo rearranjo entre parentes para os cuidados dos órfãos, inclusive ocorrendo a mudança do exercício do poder parental que, antes do falecimento, era exercido pelo pai e pela mãe, por exemplo. Quem não conhece casos de crianças que, após o falecimento de mães, passaram a morar com avós, tias ou madrinhas?

Por alguma razão contingencial de necessidades financeiras, é possível que pessoas se unam em um mesmo ambiente físico, compartilhando o espaço para criação dos filhos, tornando-se, de certa forma, uma família maior.

Algo é necessário ter em mente: o que caracteriza uma família não é apenas o lastro sanguíneo imediato. E o Direito já se atualizou neste sentido, tanto que veda diferenças de tratamentos entre filhos biológicos e filhos adotados. Todos devem ser respeitados igualmente em direitos de reconhecimento de filiação, em direitos hereditários, dentre outros.

A Constituição Federal de 1988 preceitua em seu art. 227, 6º, que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designação discriminatória relativa à filiação”.(BRASIL, 1988)

Feitas estas considerações, vamos discutir alguns pontos sobre o filme divulgado no cartaz que abriu este artigo.

Em fevereiro do ano de 2022, houve o lançamento do filme “Madres Paralelas”, do diretor Pedro Almodóvar. Agora teremos um pequeno sapoiler, prepare-se.

No enredo do filme, duas mulheres, parturientes, se conhecem no hospital. Com histórias e experiências bem diferentes: uma mulher madura, Janes e a outra mais jovem, Ana. Ambas vindas de famílias cujas mães vivenciaram processos de rompimento com papeis sociais que limitam a atuação das mulheres, após a maternidade.

Estas duas parturientes trocam telefones, antes de terem alta do hospital, para depois seguirem suas vidas, cada qual cuidando da respectiva filha. Até que uma delas, Janes, desconfia da possibilidade de não ser mãe da bebê, dado que a filha possui aparência bem distinta dela própria e do pai.

Decide, então, fazer um exame de DNA, colhendo amostras dela e da filha. O resultado do exame é certeiro: Jane não é mãe da bebê. A partir deste ponto, o filme assume uma tensão perturbadora.

Na sequência, as mães acabam se encontrando, por mero acaso, em um café. Ana trabalhava no local. Elas marcam um encontro na casa de Janes. No encontro marcado, Ana revela que a filha recém-nascida havia morrido de mal súbito.

Tomada de profunda tristeza – neste ponto Janes já desconfiava da possibilidade de que as bebês dela e de Ana haviam sido trocadas na maternidade - e também necessitando de ajuda com os cuidados da filha, Janes convida Ana para trabalhar e morar em sua casa.

Elas se toram uma família, a partir deste momento. Uma família inesperada.

Posteriormente Janes faz o teste de DNA em Ana e na bebê, furtivamente. Simula que estava coletando amostras de saliva em ambas para exames odontológicos. A tensão aumenta quando o resultado chega e confirma as suspeitas de Janes: Ana é a mãe da bebê, que, até então, cuidou como filha.

Janes conta para Ana a verdade e esta decide ir embora, levando a criança. Posteriormente, elas voltam a conversar e Ana cede espaço para que Janes continuasse a visitar a criança periodicamente.

O filme é tenso, com uma situação improvável porém possível, o que tipicamente é marca do diretor Almodóvar. Além disso, tem por pano de fundo outras discussões políticas fundamentais, que aqui não irei abordar, pois pretendo manter foco sobre a temática da família, central na proposta deste artigo.

Esta família retratada no filme, composta por duas mulheres e uma criança, possui um percurso formativo inesperado e não se desfaz mesmo após a verdade sobre a troca dos bebês ser revelada. Janes permanece como mãe afetiva da filha de Ana.

No Direito brasileiro já se reconhecem as relações parentais afetivas, como mostra o filme, ao retratar Janes, que se torna mãe efetiva do bebê de Ana.


Os percursos inesperados de formação familiar também são fontes de processos educativos, de autoconhecimento, posto que são experiências ímpares vivenciadas pelas famílias e pela sociedade como um todo.

O filme, ficcional, sensibiliza o exercício de um olhar diferente da vida cotidiana: mais atenta, mais tolerante e consciente da complexidade que envolve os arranjos interpessoais, que chamamos de família.



Paloma Elaine Santos Goulart

Escritora e Professora.

Doutora e Mestre em Sociologia / Especialista e Bacharela em Direito



#educacao #ensino #valores#direito #autodesenvolvimento #popularizaçãodaciencia #etica #direitonaescola #justiça #familia #direitodasfamilias #direitodefamilia #diversidade #diversidadecultural #palomagoulart.advogada

Siga as Redes para mais Conteúdos!








Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

SARACENO, C. Sociologia da Família. Lisboa: Editorial Estampa Ltda.1997.


Imagens

Cartaz do Filme: Madres Paralelas, dirigido pelo cineasta Pedro Almodóvar (2022)



Comentários